sábado, 26 de fevereiro de 2011

A INGERÊNCIA POLÍTICA E A PRF



A INGERÊNCIA POLÍTICA E A PRF
25.02.11

Texto extraído do livro "Segurança tem saída", de Luiz Eduardo Soares.

A descoberta do que é a Polícia Rodoviária Federal foi uma grata surpresa. Um privilégio do cargo que ocupei em Brasília, por dez meses, em 2003. Como secretário Nacional de Segurança Pública, tive a chance de conviver com profissionais da PRF e de conhecer por dentro seu cotidiano, seus dilemas e potencial. Quando participei da elaboração do plano nacional de segurança para o então pré-candidato Lula, entre 2000 e 2002, propus que deixássemos de fora a Polícia Federal e a PRF, assumindo nossa ignorância e indicando ape-nas que deveriam ser realizados diagnósticos institucionais sobre ambas, para que projetos bem fundamentados fossem formulados. Eu estava certo, recomendando prudência. As informações que cir¬culavam sobre ambas, mesmo entre especialistas, eram irrisórias. Mas foram os profissionais da PRF que mais me impressionaram, desde o período da transição, quando atuei, entre mais de 80 técni¬cos, como o único representante do futuro governo Lula na área da justiça e da segurança. O fato de haver um só representante já demonstrava que a importância atribuída a essa matéria era mínima. Da Polícia Federal eu tinha uma impressão sombria. Sombria porque nebulosa, incompleta, indefinida, e também porque pouco alentadora. Mais do que palavras críticas, contava para meu juízo o testemunho da perseguição política. Dois delegados da maior qua¬lidade, profissional e moral, que me visitaram em casa em 2002, durante a campanha eleitoral, no Rio de Janeiro, quando eu era candidato a vice-governador na chapa do PT, foram deslocados das funções relevantes que exerciam como forma de punição e de sina¬lização para os demais que ousassem aproximar-se de mim. Um primitivismo de arrepiar. Coisa da idade da pedra lascada Em novembro de 2002, durante o processo de transição, fui procurado por entidades que representavam policiais rodoviários em 16 estados. A reunião cheia de gente foi antecedida por sessões de fotos e troca de amabilidades. Apesar do clima cordato, eu estava preparado para enfrentar demandas corporativistas justificáveis, mas, provavelmente, impossíveis de atender. A surpresa não poderia ter sido maior. Os representantes da categoria só me pediram dois compromissos: o apoio do governo à luta dos profissionais contra a corrupção que grassava no interior da instituição - apesar dos méritos excepcionais do general Moraes, um comandante excelente, por cuja manutenção no governo lutei o quanto pude, em vão - e o fim do loteamento político da PRF, quer dizer, o fim das
indicações políticas para os cargos técnicos, sobretudo para as superintendências regionais, que aconteciam a torto e a direito, contra o desejo da categoria e do comando. Esse aparelhamento desmoralizava a instituição e era a principal fonte seja da corrupção, seja da ineficiência. Era emocionante ouvir aquilo. O Brasil tem jeito, a segurança tem saída, a humanidade merece nossa fé. Pensei coisas bonitas e alentadoras assim. Tive vontade de abraçá-los um a um e cantar o Hino Nacional. Para mim, era uma espécie de reencontro com a própria razão de ser da crença no país. Enchi o peito, com orgulho, e respondi com toda a convicção: "Eu lhes garanto que esse procedimento absurdo não se repetirá no governo Lula. Afinal, por que lutamos durante décadas? Não foi para um dia sermos capazes de fazer política de outro jeito e mudar o país? Sempre denunciamos o loteamento político, o aparelhamento e outras indignidades. Podem contar comigo e confiar no governo." Eles não pareciam céticos. Ao contrário, mostravam-se otimistas como quase toda a sociedade, naquele momento. Mesmo assim me advertiram: "Vamos visitar o senhor, novamente, daqui a alguns meses"
Lula tomou posse, fui confirmado na Secretaria Nacional de Segurança e a vida seguiu seu curso. Pus o pé na estrada e saí atrás do apoio dos 27 governadores ao nosso plano nacional, porque só poderia ter êxito um consenso negociado, sem arrogância ou tentativa de manipulação. Para construir um sistema único de segurança (o SUSP), reformando as polícias e viabilizando a cooperação entre instituições dentro dos e entre os estados, seria indispensável o envolvimento ativo de todos os principais atores políticos. Felizmente, até agosto de 2003, todos os governadores assinaram o termo de apoio ao plano nacional e nós instalamos, como primeiro passo da nova caminhada, 27 gabinetes de gestão integrada da segurança pública, um em cada estado. Cabia ao presidente fazer a sua parte: não cortar os recursos do Fundo de Segurança Pública; enviar ao Congresso um projeto de lei normatizando o SUSP (com exigências mínimas de qualidade que todas as polícias existentes ou a serem criadas teriam de cumprir), e uma emenda constitucional retirando da Constituição a definição do modelo de polícia e transferindo aos estados a autoridade para escolher seu próprio modelo, de acordo com suas
necessidades e possibilidades. Lula não fez sua parte. Preferiu não cumprir suas promessas de campanha, consolidadas no plano nacional, porque temia tornar-se o maior protagonista nacional da área da segurança. Por uma razão muito simples: o sucesso das reformas viria a longo prazo; a curto prazo, continuariam os problemas. E todos eles acabariam sendo imputados ao presidente, se ele se transformasse no líder do processo de reforma da segurança. Seria mais prudente deixar a bomba no colo dos governadores e evitar riscos de desgaste. Uma pena. Mais uma vez o cálculo político preservava o ator político, mas contrariava o interesse público. Estivemos a um passo da grande mudança... Claro que a mudança dos marcos legais, por si, não resolveria os problemas, mas criaria as condições para que as reformas começassem a ser realizadas. Hoje, por maior que seja a boa vontade de um governador, a camisa-de-força constitucional bloqueia qualquer iniciativa reformista mais profunda. As melhorias possíveis, atualmente, são muito limitadas, porque as estruturas organizacionais das polícias não podem ser tocadas. Quando meu trabalho no governo começava a engrenar, fui procurado por alguns policiais da PRF, no Rio de Janeiro. Precisavam falar comigo, privadamente. A conversa foi curta e objetiva. Eles confiavam em mim o suficiente para se arriscarem a trazer-me denúncias muito graves sobre o então superintendente, no estado. As informações eram inacreditáveis e envolviam receptação de carga roubada, adulteração de combustível, contrabando e outros crimes. Os esquemas estavam documentados e as descrições eram realmente impressionantes. Pedi que indicassem dois colegas para acompanhar-me, imediatamente, a Brasília. Telefonei ao diretor-geral da PRF e o convidei para uma reunião em meu gabinete. Tomamos o primeiro vôo. A reunião foi tensa. O diretor custou a crer. Exigi a exoneração do superintendente. Mesmo que tudo fosse um engano, um mal-entendido ou uma armação, o fato é que ele não poderia continuar ocupando um cargo de confiança de tamanha responsabilidade enquanto o caso não fosse esclarecido. Finalmente, o diretor rendeu-se, quando ameacei ir direto ao presidente. Eu estava blefando. O presidente deixou de receber o segundo escalão desde a posse. O Núcleo Duro blindara o gabinete.
Na manhã seguinte o Diário Oficial registrava a exoneração do posto de superintendente da PRF no Estado do Rio de Janeiro, que é um cargo de confiança - não houve demissão da polícia, evidentemente, porque isso requer longo processo, que envolve investigação e, claro, amplo direito de defesa. Em torno do meio-dia, o superintendente afastado me ligou, com insistência. Assessores que atendiam meu celular estranharam a atitude e perceberam indisfarçável agressividade no tom da voz. Estranharam porque os policiais costumam respeitar a hierarquia e a disciplina, mesmo em situações tensas. Ligar diretamente para um secretário nacional não ocorre nunca a um profissional de posição subalterna. Não que eu me importasse com essas coisas. Mas era significativo. O recado que me mandava, repetidamente, era o seguinte: ele sabia que fora eu o responsável por sua exoneração. Que não era justo; não podia acontecer. Atribuímos a impertinência à revolta natural, sobretudo em se sabendo das consequências, uma vez que, dados os motivos, a exoneração seria apenas o primeiro passo de um procedimento de apuração, administrativo e criminal. Isso caíra como uma bomba na vida do superintendente. Era compreensível o desespero. A impunidade se tornou tão comum no Brasil que rompê-la causa perplexidade. Não dei maior importância aos telefonemas. Uma hora depois recebemos comunicado urgente do departamento de inteligência da Secretaria de Segurança do Estado do Rio. O Disque Denúncia recebera informação de que essa mesma pessoa estaria preparando um atentado contra mim. Era muita coincidência, ainda que isso pudesse vir de inimigos do ex-superintendente, interessados em levá-lo ainda mais para o fundo. Em ambientes minados, nunca se sabe. De todo modo, nos vimos obrigados, eu e minha equipe, a intensificar as medidas de segurança. Até porque eu estava de partida para o Rio. À noite, na Rua do Catete, o segundo carro de minha segurança - passei a circular com dois carros - identificou um Passat branco com quatro homens nos seguindo. Numa manobra ágil, o Passat foi fechado, mas o motorista desconhecido foi ainda mais rápido, subiu na calçada e fugiu pela contramão por uma rua lateral. O segundo carro da segurança não tinha licença para segui-lo, porque a norma elementar recomenda cautela com esses movimentos que podem ser meras ações diversionistas, realizadas exatamente com a
intenção de atrair a atenção do veículo que atua na cobertura, deixando o alvo vulnerável. Descobrimos que a placa do Passat era fria. Dois ou três dias depois, o prédio onde moram meus pais desde 1964, na Rua das Laranjeiras, numa área pacata, foi alvejado com vários tiros, em plena madrugada. Janelas quebraram. Moradores desceram à rua em pânico. Segundo o porteiro, alguns homens desceram de um automóvel e atiraram em direção ao prédio. Evitei dar publicidade ao episódio por várias razões. Meus pais e seus vizinhos também preferiram a discrição Começaram a chegar recados do ex-superintendente: quem ri por último ri melhor. Fulano de tal o substituiria. Gente sua. Gente de seu grupo político. Eu não perdia por esperar. Levei o caso ao ministro da Justiça, meu superior hierárquico. Aliás, compartilhei com ele todos os lances do episódio, desde o início. Aproximadamente uma semana depois dos tiros em Laranjeiras, o ex-superintendente sofreu um atentado e quase perdeu um braço. Sobreviveu por milagre. Nosso pessoal da inteligência correu à delegacia e constatou uma curiosa interferência de seu irmão, policial civil, no boletim de ocorrência, o qual registrava apenas uma tentativa de assalto. Aos poucos deciframos o enigma: o ex-superintendente, provavelmente, já havia recebido - antes da exoneração - pagamentos por "serviços" ou "produtos" que não poderia mais entregar, em função da perda do cargo. Avisei ao ministro sobre mais esse lance e lhe pedi todo o cuidado do mundo na nomeação do substituto. O quadro se tornava cada vez mais complicado e a cada dia mais tenso. Pedi que a Polícia Federal interviesse e investigasse. Alguns dias depois, um calafrio percorreu minha coluna quando li o Diário Oficial, levado por um assessor inteiramente transtornado. O governo nomeara a tal pessoa que o ex-superintendente anunciara em seus recados irônicos e ameaçadores. Desci aos saltos a escada privativa que ligava meu gabinete ao do ministro. Entrei sem fôlego e sem voz. Ele estava de pé e se antecipou. Sabia por que eu estava ali e imaginava meu sentimento. Ele próprio estava profundamente chateado e desconfortável, mas, infelizmente, fora impossível impedir a nomeação. José Dirceu já havia negociado com Roberto Jefferson aquela superintendência e o acordo tinha sido fechado.
Moral da história: O ex-superintendente exonerado por minha pressão foi preso pela Polícia Federal um ano depois desse episódio. As acusações se confirmaram. Ele havia sido indicado pelo deputado Jefferson, assim como seu sucessor o seria. Era pessoa do grupo político do deputado, no estado do Rio, assim como seu sucessor. Isso, entretanto, não significa que o deputado soubesse de suas práticas criminosas ou que tenha sido seu cúmplice. Tam¬pouco significa que o sucessor fosse capaz dos mesmos procedi¬mentos. Os ministros envolvidos no episódio evidentemente não aceitariam nenhuma cumplicidade com tais práticas. Meu intuito foi simplesmente relatar os fatos. Eles apenas mostram, de meu ponto de vista, que o rigor com que agentes políticos se aplicam à tessitura de alianças nem sempre corresponde àquele aplicado a outras questões e compromissos. Mesmo quando essas outras questões são graves a ponto de mexerem com a vida e a morte, como é o caso da segurança pública. O segundo encontro com os representantes regionais da PRF foi melancólico. Eu os olhava num misto de vergonha e decepção. Intuí que eles compartilhavam esses sentimentos. As palavras foram escassas. Não sei até que ponto eles retiveram de mim a imagem de alguém que tentava cumprir o seu dever, mesmo derrotado, ou se passaram a me ver como um elo nas engrenagens dessa máquina degradada que é a politização da segurança e do serviço público. Anos depois foi irônico que o mesmo par, Dirceu e Jefferson, protagonizasse a catástrofe ética do governo.
Fonte SinprfEs
Autor/Fonte: Alexander Diretor Social SinprfGO
http://www.sinprfgo.com.br/verNoticia.php?id=1274&c=5

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