sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Calibre do perigo


Baseado em fatos reais

Madrugada em algum posto de Polícia Rodoviária Federal. O telefone toca. Do outro lado da linha um usuário informa acidente em determinado KM de alguma rodovia federal. O PRF comunica ao seu colega de equipe. São apenas dois homens para cuidar de cerca de 300 km de trecho. Apesar do Manual de Rotinas Operacionais e toda doutrina policial dizer que não existe policiamento de um homem só, um colega fica no posto e o outro desloca sozinho para o local do ocorrido. Situação muito comum pela atual falta de efetivo e da falta de regulamentação por parte dos gestores, do trabalho de policiais sozinhos e de equipes com dois policiais. Deve-se priorizar a segurança dos policiais ou o patrimônio da polícia e de terceiros? Em qualquer lugar do mundo, numa escala de valores, a vida e a integridade física são mais importantes que o patrimônio.
O próprio policial tem seu treinamento vinculado à existência de pelo menos um parceiro, e a orientação de não abordar sozinho é o mandamento número um de qualquer academia de polícia.
Mas o atendimento a acidentes é uma abordagem. E ocorrendo de madrugada é uma abordagem de alto risco em virtude da probabilidade muito maior de se cruzar com marginais. Pois à noite, como dizem, todo gato é pardo!
Mas a dupla supracitada toma a mesma decisão que vários PRF´s tomam todos os dias Brasil afora: a insegurança jurídica causada pela falta de regulantação do trabalho de equipes incompletas os compelem ao risco. Resultado : fica um no posto e o outro desloca sozinho para o local da ocorrência.
E a partir de agora apelaremos para a ficção:
São três horas da manhã, o PRF que chamaremos de Francisco inicia um longo deslocamento de 150 quilômetros. Afinal, acidente de madrugada no final do trecho é pleonasmo vicioso! Com giroflex ligado ele segue em seu deslocamento solitário, não sabendo ele que a 10 km dali, em sentido contrário, oito assaltantes fortemente armados deslocam em dois carros com o seu arsenal para explodir uma agência bancária da região. Quando visualizam a viatura de longe se surpreendem. O chefe da quadrilha pergunta se alguem falou besteira pelo celular, porque a polícia poderia ter grampeado e se antecipado ao furto qualificado. Eles aceleram, e os fuzis e as pistolas são apontadas para a viatura da PRF, a espera da mínima possibilidade de abordagem, para então fuzilar sua lataria e quem estiver dentro. Mas felizmente o policial rodoviário cruza os carros e passa direto, sem ter noção do risco de vida que acabara de correr. Os bandidos, aliviados, seguem viagem.
Cinquenta quilômetros depois, em local ermo, 6 bandidos estão de tocaia numa vicinal a espera de um ônibus de sacoleiros, que toda semana desloca para a cidade fictícia de Touritama, para comprar confecções. Sabendo que os passageiros estão com dinheiro, eles esperam, com um tronco de árvore já preparado para obstruir a BR, oportunidade para realizar o assalto e fazer a “limpa” no bolso dos pobres sacoleiros. Quando visualizam a viatura da PRF se aproximando, eles se assustam e firmam posição combativa defensiva, com os revolveres e escopetas voltados para a BR, a espera de que a viatura apenas diminuia a velocidade para enchê-la de balas. Pra sorte do nosso colega Francisco, ele apenas continua sua viagem, mais uma vez sem saber do risco que correu ao cruzar com o segundo grupo de marginais.
Ao chegar no local do acidente, o PRF encontra o motorista sangrando e com as mãos amarradas. Não foi acidente, a vítima relata que estava viajando quando seu carro foi colidido lateralmente por outro, e que bandidos roubaram seu carro e abandonaram o outro em seguida. Não mataram ele porque não deu tempo.
O medo toma conta do policial, que só agora se dá conta do risco que está correndo ao trabalhar sozinho. Ele olha para os lados para ver se existe mais alguém no lugar. Em um segundo momento ele se dá conta que se acontecer algo com ele, não haverá reforço. O PRF mais próximo está, sozinho, a 150 quilômetros de distância e não há sequer comunicação via rádio. Se ele for baleado, terá a certeza que sangrará até à morte no local e seu corpo esfriará até que alguém da outra equipe, no dia seguinte, desloque para lá para saber o que aconteceu. A primeira imagem que aparece em sua cabeça é a da sua família, e naquele momento ele desperta do transe. Coloca a vítima no carro, leva ela pra delegacia de polícia civil mais próxima, e pede aos policiais do local para guinchar o outro veículo, provavelmente também roubado, para ser levado para a polícia judiciária.
O deslocamento de volta pro posto parece ser mais longo que o da ida. O PRF Francisco, pai atencioso, esposo exemplar, bom policial, se dá conta de sua fragilidade humana, e de como a falta de efetivo tornou seu trabalho mais perigoso e, principalmente, de como um colega de ronda faz falta nessas horas. Sente-se abandonado pelos colegas gestores, que apesar de usarem a mesma farda que ele, tratam sua situação com o desdém de quem não corre risco algum, e de quem é incapaz de se solidarizar com o próximo.
Francisco tenta contato via rádio com José, colega que ficou no posto. Não consegue, motivo este que aumenta sua preocupação. Quando chega no posto encontra José no chão, com as duas mãos sobre o peito, olhos abertos e sem nenhum sinal vital. José, faltando apenas 2 anos para se aposentar, teve um ataque cardíaco. Ao cair no chão não conseguiu levantar mais. Tentou alcançar o rádio para pedir socorro, em vão. No seu desespero silencioso e solitário viu lentamente sua vida se esvair do chão sem ninguém para socorrê-lo.
Neste conto o que parece ser ficção na verdade é uma realidade diária, que na grande maioria das vezes passa desapercebida pela quase totalidade dos Policiais Rodoviários Federais. É a prova concreta da nossa incapacidade enquanto categoria de nos solidarizarmos com os nossos próprios irmãos de farda, e de quanto Deus é grande e poderoso ao evitar através pequenos detalhes que esta tragédia anunciada se concretize.
Mas a pergunta que fica é: até quando?


PRF Filipe
14a. SPRFPB 3a. Del.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto, são relatos diversos reunidos em um só texto, denunciando a fragilidade estrutural da PRF nos dias de hoje.

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